domingo, 24 de abril de 2016

"Somos livres" por Vasco Gonçalves


“Foram dias, foram anos
A esperar um só dia
Alegrias, desenganos
Foi o tempo que doía
Com os seus riscos e os seus danos
Foi a noite, foi o dia
Na esperança de um só dia”

E eis que o mais ansiado e sonhado dia, poeticamente descrito nestes versos de Manuel Alegre, chegou finalmente ao raiar do dia 25 de Abril de 1974 e ao som da intemporal “Grândola, Vila Morena” como música de fundo. “O dia inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio e habitamos a substância do tempo” como com aticismo descreveu Sophia de Mello Breyner. O primeiro dia da nossa madura e sólida democracia, e que ficará para sempre eternizado na história desta nossa quase milenar nação portuguesa como “A Revolução dos Cravos”, que de forma pacífica e ordeira instaurou um regime democrático, livre e plural, pondo fim às quase cinco décadas de ditadura fascista que ensombraram a história da nossa República. O primeiro dia, de todos os que ainda hoje vivenciamos, em que foi o povo quem mais ordenou.

Mas celebrar o 25 Abril é muito mais do que comemorar uma histórica e indelével efeméride e evocar e prestar tributo a todos os que, de forma direta ou indireta, tornam possível a sua realização e lhe deram expressão constitucional. Comemorar o 25 de Abril é celebrar, hoje e sempre, os valores da liberdade e da democracia como móbiles da nossa emancipação política, económica, social e cultural, enquanto povo e enquanto nação, e que nos afirmaram e fizeram senhores do nosso próprio destino. Comemorar Abril é celebrar as suas inalienáveis conquistas como o Serviço Nacional de Saúde, o ensino público e universal, o Estado social público, o Poder Local democrático, o sufrágio livre e universal, o salário mínimo nacional, a plena cidadania das mulheres, entre tantas outras inabaláveis e indeléveis conquistas. Mas é também impreterivelmente, e de forma muito especial, celebrar a Constituição da República Portuguesa, que este ano comemora 40 anos da sua existência. A lei fundamental que, assumindo-se como realidade tangível, consagra, inalienavelmente, os princípios, direitos, liberdades e garantias do nosso regime democrático, filho de Abril. Cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa significa, portanto, cumprir e fazer cumprir os desígnios e as conquistas de Abril devendo, por isso, constituir-se como matriz primeira e absoluta do progresso e do desenvolvimento económico, social e cultural do nosso país.

Com efeito, a mundividência com que hoje nos confrontamos, lembra-nos, com assombro, que a liberdade e a democracia são valores que para muitos povos e nações não passam ainda de um quimérico desígnio nem de um sonho distante e constantemente adiado, e que mesmo para aqueles, como nós, que respiram liberdade e democracia, jamais as podem considerar como conquistas eternamente adquiridas, nem deixar de lutar sempre pela sua suprema prevalência, enquanto  paradigma universal de organização das sociedades. Assim, o tempo presente e futuro convocam-nos para um combate permanente pela afirmação e defesa intransigentes dos direitos, das liberdades e das garantias de Abril, aquém e além fronteiras, pelo progresso, pela justiça, pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade dos povos e das nações. Somos, assim, chamados a ser parte ativa e integrante de um projeto político de democracia pós-moderna de alcance e vocação universais, que, pela multilateralização, afirme e faça valer o seu primado da liberdade, à luz da globalização da economia e dos mercados; dos movimentos demográficos e dos fluxos migratórios; das redes e das novas tecnologias e de informação e comunicação; das dinâmicas emergentes de uma revolução digital pós-industrial. Temos, portanto, de nos arrogar a assunção de protagonizar um projeto que nos torne capazes de conceber holisticamente a liberdade à luz do nosso tempo e da sua substância, em nome de uma sociedade universal liberta não só do estigma do medo, da ignorância, da pobreza e da dinâmica do imediato e do provisório, mas também do preconceito, do ódio, da intolerância, da insolidariedade, e que não se deixe, jamais, manietar pelo oportunismo populista dos nacionalismos isolacionistas, mas, pelo contrario, que seja centrado e tenha na dignidade e na condição da pessoa humana o alfa e o ómega da sua razão de ser.

O desafio afigura-se hercúleo, sobretudo pela natureza trágica e dramática dos fenómenos e acontecimentos que, cada vez mais, assolam o nosso quotidiano e pela escala e dimensão globais do seu impacto, que não só constituem um marco disruptivo com a realidade anteriormente conhecida, como põem à prova a resiliência das nossas instituições democráticas e limitam a capacidade de resposta e a eficácia das políticas nacionais. Mas a dificuldade do desafio em nada nos deve atemorizar, mas antes agigantar-nos na resistência e na luta, com a mesma magnanimidade, coragem, convicção e determinação com que os protagonistas de Abril forjaram um novo horizonte coletivo de esperança, livre e democrático.

Solenizar, evocar e perpetuar o 25 de Abril e a Constituição da República Portuguesa é, portanto, honrar hoje, amanhã e sempre, em Portugal, na Lusofonia, na Europa e no Mundo, a nossa história, a nossa memória e a nossa identidade coletivas, enquanto povo e nação senhores do seu destino. Porque afinal, como Emília Duarte eternizou na sua canção:

“Somos um povo que cerra fileiras,
Parte à conquista do pão e da paz.
Somos livres, somos livres,
Não voltaremos atrás.”


Vasco Gonçalves
Cronista habitual do Lápis da Verdade


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