domingo, 21 de fevereiro de 2016

"Alienar o Inalienável" por Vasco Gonçalves

 “Nós estamos com a Europa, mas não estamos nela. Estamos ligados, mas não comprometidos. Estamos interessados e associados, mas não absorvidos”. Foi com a sua natural refulgência que Winston Churchill esclareceu, deste modo, a posição Britânica relativamente à ideia de uma Europa Federal que Aristide Briand apresentara em 1929 na Sociedade das Nações. Quase nove décadas volvidas a coerência do discurso Britânico relativamente à Europa mantém-se praticamente intacta. A Única premissa que se alterou, apenas invertendo a sua ordem, foi de facto a primeira. É que se hoje o Reino Unido (ainda) está na Europa não está, de todo, com a Europa.
 Convém não esquecer que o Reino Unido foi, porventura, o grande impulsionador da génese da atual construção europeia, ou não tivesse o discurso de Churchill à juventude académica, proferido em 1946 na Universidade de Zurique sido o precursor da ideia de uma Europa unida, sem guerras, livre de armas e de fronteiras, que apelidou de “Estados Unidos da Europa”, que se veio efectivamente a concretizar, ainda que com as devidas diferenças face à realidade americana, sob a designação do que hoje conhecemos por União Europeia (UE). No entanto, apesar de ter dado o impulso fundacional o Reino Unido, fiel à coerência do seu discurso,só veio a integrar o projecto Europeu 16 anos após a sua criação, ou seja, quando já havia garantias de que era um projecto sólido e do qual poderia tirar proveito. Até lá preferiu apenas manter o estatuto de observador, apoiando e vigiando de perto os seus desenvolvimentos, sem, no entanto, se comprometer verdadeiramente.
 À semelhança das muletas bolcheviques relativamente à geringonça nacional, este distanciamento de proximidade tem sido sempre a estratégia britânica relativamente à integração europeia, sempre com um pé dentro e outro fora. Revela interesse, apoia e associa-se às iniciativas, mas nunca se compromete com o que é verdadeiramente fundamental, preferindo, nesse aspecto, permanecer sempre do lado de fora. Afinal, se a coisa correr mal, os britânicos facilmente daí lavam as mãos como Pilatos e seguem o seu caminho como se nada fosse e sem que ninguém os possa acusar do que seja. Mas se a coisa até correr bem podem sempre chegar-se à frente e, fazendo-se valer do seu incondicional e indispensável apoio, tirar os louros que mais e melhor lhe convenham. É caso para dizer que a vinculo britânico com a Europa facilmente se pode apelidar de uma relação matrimonial bastante conveniente, o mesmo é dizer perante um casamento com comunhão de bens, mas como inequívoca separação de males.
Tal como no início da década de 70, o Reino Unido apresentou agora novamente as suas exigências. Na altura queriam que a então Comunidade Económica Europeia cedesse para eles poderem entrar, desta vez quiseram que a UE ceda para eles não saírem. Com uma grande diferença. No passado as suas exigências iam no sentido de salvaguardar a sua posição sem, no entanto, obstaculizar o aprofundamento da cooperação e da integração europeia. Hoje as suas exigências, além de reforçarem o seu estatuto já demasiado especial e de visarem exclusivamente a satisfação dos seus populismos eleitoralistas, dos egos nacionalistas, e dos seus interesses corporativos, põe em causa a própria identidade da construção europeia, nomeadamente nos seus objectivos fundamentais, de entre os quais se destaca o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, enquanto espaço que garante a livre circulação de pessoas e oferece um nível elevado de protecção a todos cidadãos. Basta para isso olharmos para o que consagra o Tratado de Lisboa (TL), que rege toda a natureza, actuação e o funcionamento da UE, e que no seu art. 3º, terceiro paragrafo refere ipsis verbis que“A União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas (…) A União combate a exclusão social e as discriminações e promove a justiça e a protecção sociais, a igualdade entre homens e mulheres, a solidariedade entre as gerações e a protecção dos direitos da criança. A União promove a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre os Estados-Membros.” Se os objectivos não levantam qualquer dúvida, o mesmo sucede com o disposto no artigo imediatamente seguinte, o art. 4º, nº3, terceiro parágrafo, onde o TL plasma que “Os Estados Membros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União”. Convém referir que estes artigos se inserem logo no capítulo primeiro do TL que consagra precisamente o conjunto das disposições comuns fundamentais, sobre as quais assenta toda a ação e atuação da UE e de todos os Estados-Membros (EM), sem excepção, que a compõe. O mesmo é dizer, o conjunto de disposições fundamentais, que definem a identidade da União Europeia, tidas desde sempre como inalienáveis, e relativamente às quais nenhum EM jamais gozou ou goza, direta ou indiretamente, de qualquer estatuto derrogatório.
É por isso que o acordo entre o R. Unido e a UE que, pasme-se, ou não, foi considerado justo por todos, abriu um precedente demasiado grave e potencialmente irreversível para que, não se questiona se será justo um acordo que em nome da aliena uma identidade comum tida como inalienável? Será justo um acordo que permite a um EM beneficiar de um estatuto cada vez mais especial e diferenciado perante os restantes EM? Será justo um acordo que apenas permita a um EM ser solidário na hora beneficiar, mas egoísta na hora ajudar e assumir a sua quota de responsabilidade política, económica e social de um projecto comum? É este acordo o reflexo da solidariedade entre EM que a UE consagra como um do seus objectivos basilares? É este um acordo que afirma a igualdade, a justiça, o combate às discriminações e à exclusão social que a UE elenca como premissas matriciais e inalienáveis da sua identidade?
É que quando a Europa considera justo abdicar, mesmo que parcialmente, da sua própria identidade, cedendo na condição fundamental da sua existência, uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus, está a desistir de si própria e está a abrir a porta à ressurreição do fantasma negro da história. E mesmo que os seus líderes o queiram negar, o que importa ter consciência e saber preservar e perpetuar na memória colectiva europeia é que o que esteve na génese do projecto europeu e nunca pode, em momento algum, ser apagado e alienado da sua natureza e da sua identidade não são números, mas sim pessoas. Não são cenários e previsões, mas sim factos e realidades concretas. Não são interesses singulares, mas necessidades colectivas. Não são egos nacionalistas, mas solidariedades comunitárias.
E não deixa de ser, no mínimo irónico que a Europa que dos escombros da guerra e da morte se ergueu, graças à grandeza, à genialidade, à solidariedade e ao vanguardismo dos seus estadistas, nomeadamente o então Primeiro-Ministro britânico, se encontre, hoje, em vias de ruir, vendose reduzida ao egoísmo e à mediocridade e sordidez moral, intelectual e política dos seus atuais líderes, e de que o actual Primeiro-Ministro britânico é, porventura, o mais ignóbil exemplo.

Vasco Gonçalves 


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